quinta-feira, 27 de março de 2008

Domingos Palma, um exemplo a seguir

Vale a pena, pelos ensinamentos que encerra e pelo insólito da situação, recordar um pormenor picaresco do desempenho extraordinário de Domingos Manuel Fialho Palma (falecido em Cuba, sua terra natal, em 5 de Setembro de 1996) na Transtejo, seguindo um texto de Eduardo Maria Rato Martins Zúquete.

No seguimento do movimento do 25 de Abril e na época tumultuosa e vertiginosa dos governos provisórios –cuja vivência forte, poderosa, agreste só a nossa geração e as próximas estão em condições de plenamente avaliar – o nome do Domingos apareceu em cena. As várias empresas que detinham a concessão do transporte fluvial no Tejo na região de Lisboa tinham desaparecido, volatilizadas na turbulência política e sindical da época e arruinadas por uma gestão decadente e pouco esclarecida. A inauguração da ponte sobre o Tejo, em Agosto de 1966, liquidara, pela mais fácil concorrência rodoviária, um monopólio mal organizado e não teria havido a clarividência de prever que a ponte até poderia ter ajudado o sistema fluvial a se reordenar de uma forma mais conveniente. Tinham ficado apenas ruínas – administrações ausentes, barcos abandonados e desprovidos de condições de navegabilidade, pessoal entregue à sua sorte, lamentando-se e exigindo imperiosamente o céu e a terra.

Entendeu-se então, depois do declínio e da agonia lenta e mal assumida, que era indispensável e urgente reabilitar o transporte fluvial, particularidade única de Lisboa e da Grande Lisboa, que muitas vezes não tem sido avaliada nem correctamente estimada, e que, para o efeito e com vista a tirar o maior partido da situação, havia que reunir numa empresa pública única todas as diversas (sete, salvo erro) concessões de travessia – empresa essa que, de início, tinha um nome complicado e gongórico mas que alguém mais esclarecido acabou por crismar simplesmente de Transtejo, nome sugestivo e forte que perdura. E confiou-se a presidência da sua administração à CP, que será o parceiro mais robusto e mais bem equipado d grupo ma que minuciosas ou mesquinhas razões, não sei ao certo, acabaram excluindo da parceria – aparentemente com prejuízo do sistema, certamente com prejuízo do utentes,

Mas, além disso, era preciso encontrar um nome de perfil raro para gerir não só o quotidiano da organização como também o seu inadiável reordenamento. Pedia-se alguém que conhecesse bem o meio marítimo e as circunstâncias empresariais, que soubesse lidar com a administração pública e com os diferentes sindicatos, que tivesse boa preparação de gestão ou de economia e uma assinalável capacidade de liderança. E por cima de tudo, que tivesse coragem física, disponibilidade total, gosto pelo risco, sentido apurado do dever e, em particular, um entusiasmo genuíno e contagioso de nível muito acima do razoável.

O membro do Governo responsável anunciou o caderno de encargos, recortou o perfil, pediu nomes. E alguém sugeriu o Domingos Palma: oficial de Marinha na reserva, administrador de uma empresa que fechara as portas recentemente, com frequência adiantada do curso de economia e então desempregado – obedecia com justeza a parte do caderno de encargos. O resto das condições só quem o conhecesse poderia avaliar e havia de fazer fé nas referências: o «boneco exterior» dava, por vezes, uma frouxa réplica da riqueza interior.

Domingos aceitou o convite sem alegria nem pesar, sem exclamações de júbilo ou de desgosto. Era uma missão, mais uma missão, e havia que a cumprir – da maneira melhor que soubesse e pudesse, com lealdade, firmeza e empenhamento. Era esta a sua escola, a sua postura neste mundo. E foi exactamente assim que sucedeu, posso testemunhá-lo.

Não cabe nos estreitos limites desta pequena notícia descrever o que foi a actuação do Domingos Palma à frente dos destinos da Transtejo – porque, em pleno entendimento com o seu presidente, engº Seixas, foi ele que transformou profundamente todo o quadro empresarial e funcional da organização e, com ela, dos transportes da Grande Lisboa; é, portanto, uma longa, rica e movimentada história que merecia ser investigada, coordenada e escrita mas que, muito provavelmente, ficará sepultada no esquecimento pelos motivos do costume: modéstia de uns, incúria de outros, inveja de terceiros.

Mas vale a pena, pelos ensinamentos que encerra e pelo insólito da situação, recordar um pormenor picaresco desse desempenho extraordinário.

De todos os problemas que Domingos Palma enfrentou de início, aquele que parecia de mais difícil solução era o da indispensável renovação da frota. Havia que substituir embarcações velhas e inseguras, havia que preencher vazios na frota para melhorar os serviços de transporte. A resposta dos estaleiros portugueses consultados era cara e lenta – o preço parecia limitar fortemente a quantidade de embarcações a encomendar, elo menos de momento, mas o mais preocupante era a demora, quase insuportável. Os estaleiros também tinham as suas razões – problemas de desinvestimento, instabilidade laboral afinando pelo diapasão da instabilidade política vigente, dificuldade em programar e cumprir preços e prazos. Além disso, não havia rotina de encomendas naquela área, havia que redesenhar, ganhar experiência, readquirir o «saber como» indispensável que fora interrompido ou negligenciado durante anos. Enfim e à primeira vista, o problema não pareça ter qualquer solução.

Foi então que Domingos teve conhecimento – estou para saber como mas creio que aconteceu no decurso de uma conversa casual – que a empresa de transportes fluviais de Hamburgo, a HADAG, tinha excedentes da sua frota. Fora aberta ao público uma nova travessia rodoviária sobre o Elba e o tráfego fluvial decaíra consistentemente: havia embarcações encostadas sem afectação de serviço, imobilizadas, fortes candidatas a prematuro abate. Um telefonema simples terá confirmado a disponibilidade e o interesse do operador alemão em as alienar.

Domingos Palma não hesitou e marchou imediatamente para o Norte da Europa, em visita de avaliação e sondagem a várias capitais e vários operadores de transportes marítimos e fluviais, e, muito especialmente, para Hamburgo, onde permaneceu mais demoradamente mas não aderiu aos padrões que seriam habituais na circunstância: preferiu levar a família e instalar-se, em férias, num parque de campismo local. Enquanto a família gozava os passeio e as férias, Domingos negociou longamente com a HADAG do modo peculiar de que só ele tinha a receita: com avanços e recuos, cedências e intransigências, rigor e diplomacia, simpatia e dureza, paixão e desapego.

No final, os resultados foram espectaculares: pelo preço de uma única embarcação nova nos estaleiros nacionais e a prazo longo, a Transtejo obtinha, imediatamente 4 embarcações em excelente estado de conservação, revistas e aprontadas para um novo período de serviço, já pintadas com as novas cores e o novo logótipo da empresa e ainda equipadas com os jogos apropriados e habituais de sobresselentes (veios e hélices, designadamente). No preço estava ainda incluído o custo do transporte em pontão trazido por rebocador de alto mar, de Hamburgo para Lisboa, custo nada negligenciável. Era um fôlego novo para uma empresa completamente asfixiada.

Todavia, o ambiente toldou-se um tanto no final. Os homens da HADAG perguntaram ao Sr. comandante em que hotel ele estava alojado, para lhe enviarem a documentação final do processo, e ele, com o ar mais natural deste mundo, soletrou o nome do parque de campismo onde aboletara. Sorrido cortês dos alemães, que não escapou nem agradou ao Domingos mas cujo verdadeiro significado ele não podia adivinhar.

Despediram-se as partes contratantes, haveria agora um compasso de espera. O acto final iria verificar-se em determinado dia no cais, quando estivessem concluídas todas as tarefas agendadas e contratadas – pintura, revisão, embarque em pontão, cabo de reboque passado, tudo a postos para a largada.

No dia aprazado, o Domingos apresentou-se no cais de Altona e ficou estarrecido com o que viu. Certo, lá estavam, alinhadas aos pares, as quatro embarcações recém-adquiridas, flamejantes no seu laranja-e-branco acabadinho de pintar, o duplo TT da Transtejo intrigando os marítimos locais que desconheciam o logótipo, os respectivos sobresselentes estendidos e bem amarrados na base do pontão. Mas, surpreendentemente, havia uma coisa nova, uma coisa a mais: outro barco! Encarrapitado na plataforma da vante do pontão, atravessado por falta de espaço, uma quinta embarcação, bastante mais pequena e aparentemente mais idosa, repousava nos seus picadeiros, bem amarrada e pronta para a longa viagem. E também ela rejuvenescida, pintada de fresco, com o novo logótipo estampado na chapa, vidros e cromados cintilando ao sol matinal do Elba.

Incredulidade, perplexidade, fúria branda – eu sei lá o que se passou pela cabeça do Domingos! Que história era aquela? Como aparecia aquele quinto barco, de que ninguém falara? E já pintado e pronto, embarcado e amarrado a bordo, materializando, sem retorno, o facto consumado!? Que história, que cabala, que equívoco produzira esta confusão?

Só posso imaginar o frenesi da situação, o desassossego do Domingos enquanto não encontrou os responsáveis e os confrontou, de cenho carregado, com a bateria inevitável de questões. Como? Quem? Quando? E…Quanto?

A resposta era simples mas inesperada: o novo barco, apenso gratuitamente à encomenda inicial, bem como toda a sua reabilitação e o seu transporte – se é que isso agravou os seus custos – eram ofertas da administração da HADAG à Transtejo. E porquê semelhante gentileza, tão pouco habitual no mundo áspero dos negócios? Simples, também: porque a administração da HADAG ficara muito sensibilizada com a atitude do administrador da empresa portuguesa, recusando mordomias fáceis e hotéis caros, quando estava lutando com dificuldades económicas para põe a funcionar minimamente a sua organização e, portanto, entendera dar, também ela, a sua colaboração às colegas portuguesas e fazia-o desta maneira. Era uma embarcação mais pequena e mais antiga, sem dúvida, mas, nas circunstâncias vigentes, talvez pudesse auxiliar a administração portuguesa a solucionar a grave crise que atravessava.

Desfez-se o equívoco, rasgaram-se os sorrisos, agradeceu-se a gentileza, reatou-se a normalidade. O recém-chegado foi baptizado de Castelo, em homenagem ao bairro de Lisboa do mesmo nome, que era ao tempo a matriz da nomenclatura, e não resta dúvida alguma que fez muito jeito, olá se fez! As cinco unidades provenientes do Elba permitiram à Transtejo encarar com mais segurança o período considerável que iria ser percorrido até começar a entrega periódica dos cacilheiros da nova geração e continuaram ao serviço mesmo depois disso acontecer, confinadas gora ao triângulo operacional Belém – Trafaria – Porto Brandão, de menor tráfego. Como este serviço apenas carecia de três unidades em, rotação, a quarta resguardava para manutenção ou reserva e a quinta passou a fazer serviço de turismo e aí, o velhinho Castelo teve os seus derradeiros momentos de glória, pavoneando-se Tejo abaixo, Tejo acima durante o tempo que durava o circuito turístico, e sempre embandeirado em arco, num permanente sorriso festivo, dádiva ímpar da Natureza, que a maioria dos portugueses ignora ou quer atravessar o mais depressa possível sem olhar.

NOTA: Trata-se de um exemplo de modéstia e rara honestidade com os dinheiros públicos. Sinto-me feliz por poder aqui dar esta prova da honradez de um português que merece ser apontado como exemplo às gerações seguintes. Repousa em paz Domingos Manuel Fialho Palma.

2 comentários:

Anónimo disse...

Conheci-o pessoalmente por razões de trabalho.
Sempre demonstrou as qualidades aqui tão bem descritas.
É pena que não lhe façam a homenagem que a sua memória merece!

A. João Soares disse...

Anónimo,
Desde rapaz, sempre demonstrou o seu carácter impoluto. Infelizmente não há muitos assim.
Quanto à homenagem, os que poderiam fazê-la não estão para aí virados porque a comparação que se faça não lhes é favorável!
Este texto não teve divulgação, apenas tendo servido para uma palestra no cinquentenário do dia em que um grupo de pazes se encontraram e iniciaram uma vida de estudantes e profissionais em comum.
É pena o anónimo não ter deixado o seu nome, mas sugiro que divulgue este post pelos seus relacionamentos a fim de virem aqui muitos conhecidos do Domingos deixar um comentário e que todos estes comentários constituam a homenagem que ele mereceu.

Abraço
A. João Soares